sábado, 27 de agosto de 2016

A POLÍTICA NAO VESTE SAIA

 
Estudante de arquitetura e fotógrafa



PAULA ROUSSEFF



"Democracia, substantivo feminino, passível de feminicídio porque ousou vestir suas saias pela primeira vez."


A frase acima é de Maria Gabriela Saldanha.


Agora, entre as mulheres, paira um sentimento de morte.


É um sentimento de impotência, de silenciamento, de retrocesso. Não falo em política ou economia. Um grupo grande de personagens e circunstâncias é responsável por isso. Falo em representatividade.


Falo de uma mulher que entrou num ninho de cobras, num universo muito machista, sujo e baixo, e jogou o jogo até o fim, um jogo imposto por homens brancos, para homens brancos.


Ela, ao contrário de tudo que se espera de uma mulher, não chorou, não se descontrolou, não fez escândalo, trabalhou de forma firme e séria até agora. Ela não agiu "como uma menininha".


E isso assusta. Por falta de argumentos, os ataques e os adjetivos ficaram ainda mais ofensivos.


Com histórico de perseguição política e tortura, ela não só saiu viva, como saiu líder dos que a torturaram. Naquela época, Dilma tomou tantos socos que tem problemas na arcada dentária até hoje. Suas sessões de tortura precisaram ser suspensas porque ela teve uma hemorragia uterina que não passava. Seu torturador, um homem acusado de enfiar ratos na vagina de mulheres, foi aclamado publicamente em rede nacional. Apesar disso, se manteve a postura ereta e silenciosa diante do circo do dia 17 de abril de 2016.


Ela jogou tão bem o jogo desses homens que o máximo que se diz sobre Dilma é que ela estava andando de bicicleta no seu tempo livre. Não, nem a roupa, nem algum gesto ou jargão no momento errado. De fato, emagreceu. Quem, no lugar dela, não emagreceria? Fotos em posições desconcertantes para qualquer ser humano não faltaram. Montagens desrespeitosas com o rosto dela também não. Mas nenhum homem foi visto ao seu lado. Ela se manteve unicamente por sua imagem, forte o suficiente.


O sentimento é de que o ministeriado de Temer dará prosseguimento ao jogo desses homens brancos, sujos, já velhos de guerra. Uma guerra construída por eles. Dessa vez, como não se vê há 37 anos, sem uma única ministra mulher num país onde 51% da população é composta por mulheres. O Ministério das Mulheres deixará de existir, como Temer já afirmou. Homem este que exibe sua bela mulher à tiracolo, como mulheres devem se apresentar. Quietas, no canto da foto presidencial. "Do lar", não da política, nunca da vida pública.


Fácil dizer que o feminismo ou outros movimentos de minorias roubam a cena das principais pautas da política do Brasil. E engraçado pensar que na verdade a minoria é composta por homens, 49% da população, e brancos, 45,9% autodeclarados, que pisaram por séculos em mulheres brancas, indígenas e negras pra conquistar o que lhes interessava. O feminismo rouba as pautas estruturais do Brasil se você está inserido nas pautas desde os últimos 500 anos. Caso contrário, o feminismo exige apenas o que nos é de direito: a representação. Com 51,6% dos votos nas urnas, a questão de representatividade parece, na verdade, estar invertida. A minoria branca e misógina urra com a perda de poder.


Não, não direi "Tchau, querida", a frase mais nojenta dos últimos tempos. E não me venham com explicações. Sei que não sou a única a sentir a ironia desse afeto, a intimidade nãoautorizada dessa frase, a deslegitimação da figura pública de uma mulher através de um adjetivo de teor íntimo e pessoal.


Deixo a imagem de Dilma e sua filha porque ela choca. Ela incomoda. A filha Paula Rousseff e sua mãe, ao receber a faixa presidenta do Brasil.


Não se vê ternos, gravatas ou cabelos brancos.


Apenas uma mãe e uma filha que não precisam da figura masculina para estar onde estão.


Com essa imagem e diante de um cenário tão desesperador, a única coisa que me vem à cabeça como um mote de esperança é que a revolução será feminista, ou não será.

A POLÍTICA NAO VESTE SAIA

 
Estudante de arquitetura e fotógrafa



PAULA ROUSSEFF



"Democracia, substantivo feminino, passível de feminicídio porque ousou vestir suas saias pela primeira vez."


A frase acima é de Maria Gabriela Saldanha.


Agora, entre as mulheres, paira um sentimento de morte.


É um sentimento de impotência, de silenciamento, de retrocesso. Não falo em política ou economia. Um grupo grande de personagens e circunstâncias é responsável por isso. Falo em representatividade.


Falo de uma mulher que entrou num ninho de cobras, num universo muito machista, sujo e baixo, e jogou o jogo até o fim, um jogo imposto por homens brancos, para homens brancos.


Ela, ao contrário de tudo que se espera de uma mulher, não chorou, não se descontrolou, não fez escândalo, trabalhou de forma firme e séria até agora. Ela não agiu "como uma menininha".


E isso assusta. Por falta de argumentos, os ataques e os adjetivos ficaram ainda mais ofensivos.


Com histórico de perseguição política e tortura, ela não só saiu viva, como saiu líder dos que a torturaram. Naquela época, Dilma tomou tantos socos que tem problemas na arcada dentária até hoje. Suas sessões de tortura precisaram ser suspensas porque ela teve uma hemorragia uterina que não passava. Seu torturador, um homem acusado de enfiar ratos na vagina de mulheres, foi aclamado publicamente em rede nacional. Apesar disso, se manteve a postura ereta e silenciosa diante do circo do dia 17 de abril de 2016.


Ela jogou tão bem o jogo desses homens que o máximo que se diz sobre Dilma é que ela estava andando de bicicleta no seu tempo livre. Não, nem a roupa, nem algum gesto ou jargão no momento errado. De fato, emagreceu. Quem, no lugar dela, não emagreceria? Fotos em posições desconcertantes para qualquer ser humano não faltaram. Montagens desrespeitosas com o rosto dela também não. Mas nenhum homem foi visto ao seu lado. Ela se manteve unicamente por sua imagem, forte o suficiente.


O sentimento é de que o ministeriado de Temer dará prosseguimento ao jogo desses homens brancos, sujos, já velhos de guerra. Uma guerra construída por eles. Dessa vez, como não se vê há 37 anos, sem uma única ministra mulher num país onde 51% da população é composta por mulheres. O Ministério das Mulheres deixará de existir, como Temer já afirmou. Homem este que exibe sua bela mulher à tiracolo, como mulheres devem se apresentar. Quietas, no canto da foto presidencial. "Do lar", não da política, nunca da vida pública.


Fácil dizer que o feminismo ou outros movimentos de minorias roubam a cena das principais pautas da política do Brasil. E engraçado pensar que na verdade a minoria é composta por homens, 49% da população, e brancos, 45,9% autodeclarados, que pisaram por séculos em mulheres brancas, indígenas e negras pra conquistar o que lhes interessava. O feminismo rouba as pautas estruturais do Brasil se você está inserido nas pautas desde os últimos 500 anos. Caso contrário, o feminismo exige apenas o que nos é de direito: a representação. Com 51,6% dos votos nas urnas, a questão de representatividade parece, na verdade, estar invertida. A minoria branca e misógina urra com a perda de poder.


Não, não direi "Tchau, querida", a frase mais nojenta dos últimos tempos. E não me venham com explicações. Sei que não sou a única a sentir a ironia desse afeto, a intimidade nãoautorizada dessa frase, a deslegitimação da figura pública de uma mulher através de um adjetivo de teor íntimo e pessoal.


Deixo a imagem de Dilma e sua filha porque ela choca. Ela incomoda. A filha Paula Rousseff e sua mãe, ao receber a faixa presidenta do Brasil.


Não se vê ternos, gravatas ou cabelos brancos.


Apenas uma mãe e uma filha que não precisam da figura masculina para estar onde estão.


Com essa imagem e diante de um cenário tão desesperador, a única coisa que me vem à cabeça como um mote de esperança é que a revolução será feminista, ou não será.

JOANA D'ARC E DILMA. DOIS PROCESSOS ESTÚPIDOS



O Jornal de todos Brasis








Joana D’Arc e Dilma. Dois processos estúpidos

por Armando Rodrigues Coelho Neto




Nem só de capitães do mato do golpe vive a Polícia Federal. Uma ínfima minoria não se curva e foi dela que veio uma valiosa contribuição. O eixo da conversa era uma frase atribuída a Karl Marx: “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Junto com a frase, veio também uma excelente comparação entre Joana D’Arc e a presidenta Dilma Rousseff. Os fatos são tão contundentes que não dá pra saber se o Brasil está diante da tragédia, da farsa ou das duas coisas ao mesmo tempo.

Aos 19 anos Joana passou a lutar por seus ideais e incomodou as classes dominantes de então. Indignada, aquela mesma classe usou a “grande mídia” de então para demonizá-la. Foi retratada como bruxa (Shakespeare), ridicularizada pela elite (Voltaire) com poemas satíricos (A Donzela de Orleans). Os formadores de opinião de seu tempo cumpriram a mesma função difamatória da imprensa e redes sociais de hoje.

Aos 18 anos Dilma entrou na luta por seus ideais. Ambas foram vítimas da misoginia e tiveram sua sexualidade e ou vida sexual investigada. A pobre Joana teve até a virgindade averiguada, sob as ordens (coincidentemente) de velhos sisudos, misóginos, ricos e hipócritas. Ambas foram criticadas por se portarem “como um homem”. D duas mulheres disciplinadas, honestas, com forte sentimento patriótico!

Joana D’Arc defendia a união do seu país e tinha como aliados um segmento de nacionalistas. Já seus adversários eram nacionais subservientes aos interesses do Império Britânico, então invasor. Qualquer semelhança entre Dilma Rousseff e os entreguista apressados em vender o patrimônio nacional é mera coincidência.

Joana desafiou as tropas inglesas, Dilma “desafiou as tropas americanas”, que ousaram bisbilhotar suas conversas - um mau exemplo mais tarde seguido por um tal de Sérgio Moro. A propósito, se estivesse nos Estados Unidos da América, a ação desse senhor seria tratada como Crime de Estado. Se dependesse do xerife de Maricopa (EUA) já estaria na cadeia usando algemas cor de rosa.

Joana D’Arc e Dilma Rousseff foram traídas por aqueles que até um determinado ponto eram vistos como aliados. Joana tinha como inimigo um certo John Fastolf - um bandido da pior espécie. Curiosamente, a presidenta Dilma também teve o seu “John”. Não se sabe se por tragédia ou farsa, no eixo da questão aparece um tal Eduardo Cunha. No auge das perseguições, jogaram contra Joana um rol de 70 enxovalhos, mais tarde resumidos a 12. Qualquer semelhança com o rol de acusações contra a presidenta Dilma é uma grande coincidência.

Tragédia ou farsa, Joana foi vítima de um tal Conde de Warwick, que tentou acelerar seu processo, porque, segundo a lenda ou intérpretes ousados da história, a demora podia reverter a opinião pública em seu favor. E não é que no Brasil não falta Warwick tentando abreviar o processo da presidenta Dilma com medo de que a situação se reverta? Qualquer semelhança com os papeis exercidos por um tal de Renan Calheiros e Anastasia também é mera coincidência.

Por falta de argumento para condenar Joana D’Arc, os velhos ricos, misóginos e sisudos de então decidiram usar como argumento principal (razão técnica) para sua condenação, algo despropositado: uma Lei Bíblica sobre roupas. A ousada Dama vestia roupas masculinas. Uma acusação tão insólita quanto as tais “pedaladas fiscais” - um termo estúpido inventado por um canalha para confundir o povo brasileiro. Uma ignomínia tamanha que até a Procuradoria da República já disse não ser crime e que, crime ou não tal fato não existiu.

Em que pese as evidência, Joana D’Arc foi queimada em Praça Pública no ano de 1431. Durante o estúpido ritual, foi xingada pelos traidores da Pátria, que a chamaram de mentirosa, bruxa e praticante de blasfêmia. Somente 20 anos depois o Papa Calisto III revisou o processo e a considerou inocente. Na sentença, uma explícita declaração de que o processo continha vícios de forma e conteúdo e foi anulado.

Para os místicos de plantão, um alerta: tanto a soma do número 1431 quanto a de 2016 têm como resultado o número nove. Com tantas coincidências entre essas duas damas, é temeroso supor que como farsa ou tragédia a história possa se repetir, e a sociedade brasileira tenha que se curvar diante de Karl Marx. Portanto, já passou da hora de organizar a resistência.

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo

domingo, 21 de agosto de 2016

ESTA MORTE NÃO FOI POLÍTICA

Revista Continente
Fernando Monteiro




No século XX, nenhuma das figuras exponenciais da cultura (e foram muitas) teve a vida ligada a fatos extremos da luta política tão tragicamente quanto Federico García Lorca, o grande poeta espanhol assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada Víznar-Alfaca, na sua província natal.

Lorca era andaluz, e foi fuzilado dois dias depois de preso por uma milícia fascista, na Granada da Alhambra encarapitada nos morros da cidade e, até hoje, a memória de Federico segue preenchendo a história granadina e contribui para fazer de Andaluzia um dos destinos turísticos mais carismáticos da Europa.

De certo modo, Granada se tornou duas legendas: Alhambra & Lorca – uma no seu esplendor arquitetônico e outro nos seus cantares “gitanos” e, por fim, no pranto de condenado à morte quase podendo ser ouvido pelos amigos e pela família detentora de boas propriedades de gente abastada, na cidade e no campo.

Quando alguém as visita, é impossível não se perguntar como foi possível o fuzilamento sumário, a agressão covarde e fatal contra o membro mais destacado – intelectualmente – daquela linhagem andaluza enraizada num lugar em que todos se conheciam. É claro, de imediato tudo foi atribuído ao descontrole do fascismo, nas três etapas: a da intenção de prender, a da decisão de nem “julgar” e a da ordem, por fim, de executar sem mais delongas. Quem foi o responsável? E por quê?

Essa pergunta esteve posta desde que começou a circular largamente a notícia da morte do homem que, segundo relatos da época, chorou na madrugada, diante do inacreditável fato de que iriam realmente fuzilá-lo de face para aquela manhã clara da Andaluzia que ele, filho da região, havia cantado em versos imortais.

Existiriam “motivos” políticos para a ousadia de matar um poeta já muito conhecido, um jovem com um vasto círculo de amizades na Espanha e também no exterior? Sabemos que fascistas são temerários (a palavra é essa), mas sempre houve algo de estranho nesse crime, além de obscuridades diversas, telefonemas vários, discussões, ordens e contraordens… e até uma arma apontada para a autoridade militar de Granada – por um fascista da Falange! – em defesa veemente do preso.

É necessário, na verdade, recontar um pouco da tragédia, desde antes daquela manhã fatídica e, para isso, devemos ver Federico, ainda em Madri, sendo desaconselhado à ideia de seguir “para casa”, justamente para fugir dos perigos da capital, naquele primeiro ano da Guerra Civil. Os amigos tentaram fazê-lo desistir da viagem e permanecer entre eles. Alegavam que, na pequena Granada, ele estaria muito “mais exposto” do que na grande cidade, porém o poeta retrucou que lá, na sua Andaluzia, todos o conheciam e sabiam das suas origens. Ninguém conseguiu demovê-lo do intuito de assim se proteger e, dias depois, o poeta viajaria para Granada – e para a morte.

ÓDIOS ENTRE MUROS
Os amigos de Lorca tinham razão. O poeta encontraria, na Granada antigamente “mágica”, os eflúvios de ódios desatados à direita e à esquerda, no estreito ambiente limitado pelos muros seculares. Sim, ele era conhecido, para bem e para mal, como poeta e jovem boêmio de vida mais ou menos dissipada (e gostariam de dizer, claramente, a palavra derrisória para homossexuais: “vida de maricón”)…

A cidade estava inevitavelmente alterada por medos, rumores e rancores velhos de antes da guerra. Circulavam boatos em torno de prisões já decretadas, e o seu nome teria sido mencionado. Assim, de acordo com recomendações familiares, Federico se transfere da sua casa para, algumas ruas depois, uma mansão de amigos dos Lorca-García: os Rosales, igualmente bem-relacionados e com integrantes da Falange (a sinistra agremiação política identificada com o “nacionalismo” de Franco) dentro de casa, do mesmo modo como também havia um poeta adolescente, Luis Rosales, mais tarde autor da obra-prima La casa encendida. A mudança parecia segura e conveniente para a segurança do belo rapaz das noitadas madrilenas.

Neste momento no qual acompanhamos FGL seguindo para abrigar-se no meio dos Rosales, é preciso notar uma primeira discrepância, talvez, com relação ao futuro matiz da lenda que, após o crime, começará a ser fixada pela última manhã do poeta máximo da moderna literatura espanhola (em termos de repercussão internacional). Dela, dessa aurora nascida para a morte – inesperada –, viria a se compor um retrato sacrificial, isto é, a efígie de Federico Garcia Lorca coberta de sangue, vítima republicana a mais ilustre possível: havia sido fuzilado o bardo do “amor bruxo”, o cantor do romanceiro das estradas de saltimbancos, o vate andaluz, o “herói” em queda pelo lado esquerdo do peito varado pelas balas da Guarda Civil e outras hostes fascistas que levaram o ditador Franco a esmagar a Espanha por quatro décadas de autoritarismo, repressão violenta e controle absoluto de um povo tão difícil de domar quanto um miúra bravo nas plazas de areia e sangue.

Sangue, sim, se derrama por toda a ardente Península Ibérica, mas, ali na Espanha, ele se concentra como coágulos nos cristos deitados nas catedrais escuras, no espetáculo dos touros (e dos toureiros) feridos e nas graves sequelas de um conflito interno que, em agosto de 1936, envolveria o gênio de Andaluzia até arrastá-lo para morrer como um animal de abate, naquele morticínio maldito para todos.

Esse “para todos” introduz a maior parte das dúvidas que vinham se alargando, há anos, sobre quem realmente matou Lorca, ou seja, sobre quais nomes e quais motivos provavelmente se ocultaram num assassinato que ganhou a aura, imediata, de barbaridade máxima nessa confusa quadra da história do país de Cervantes. E, desde já, parece que temos de abandonar uma querida certeza acalentada por décadas: a do Lorca sacrificado em nome da ideologia – pois há que encarar a face, menos exposta, de um poeta lírico que não foi nenhum quixote, ou que não pretendia ser um paladino das esquerdas e, pelo contrário, estava em fuga das bandeiras e das fumaças da frente de combate. Federico era praticamente apolítico – segundo a unânime opinião dos que o conheceram – e até teria nutrido, num certo momento, uma velada simpatia por “governos fortes”, por autoridades que pudessem pôr “ordem” naquela casa, mais do que caótica, da Espanha da primeira metade do século passado.

Isso foi confirmado por Luis Rosales, a respeito de um artista no auge do sucesso, como poeta e dramaturgo, quando a guerra estalou, fratricida. Naquela altura, mais do que nunca, ele era um Lorca vivaz em Madri, um ser risonho e animado na capital onde mantinha outros interesses muito para além da política (que nenhum dos seus colegas da famosa “Residência dos Estudantes” e amigos das letras, do teatro e da boêmia de Madri enxergaram, jamais, no horizonte do rapaz bem-nascido, bonito e dândi de todas as fotografias do mito que veio a se tornar Federico, o Assassinado).

Esse é o primeiro degrau que se tem que firmar, a fim de galgar os patamares mais obscuros da tragédia. Ela surpreende, antes de mais ninguém, o povo de Granada, e a verdade – ou o que parece ser a “verdade”, tantos anos depois – vem se insinuando no território mais íntimo da família do poeta, entre parentes insultados e queixosos de negócios em sociedade com o pai de Lorca, o “patriarca” Federico García Rodriguez.


QUEM MATOU LORCA?
Todos que leram a obra do irlandês Ian Gibson (que serviu mais ou menos de “cânone” para estabelecer a versão do assassinato eminentemente “político”) decerto lembram o nome do pai do poeta como apenas uma referência ao marido de Vicenta Lorca, no registro da filiação do artista caído “sob os disparos pelas costas, feitos pelos fuzis do ódio fascista” etc.

Nada a contestar sobre a periculosidade dos “ódios fascistas” (é claro), porém as pesquisas mais fundas foram, recentemente, bem mais eficazes no levantar das discórdias e invejas no seio dos quatro ramos familiares, no caso de Lorca: os Roldán, os Benavides, os Alba e os García da linhagem paterna do poeta assassinado.

Longe da idealidade firmada – com as melhores intenções – por Gibson, de imediato ouçamos o historiador andaluz Miguel Caballero, dentre outros que foram revolver os quintais domésticos, na retaguarda de Víznar-Alfaca: “Afirmar que mataram Lorca por ser homossexual e ‘vermelho’ é uma simplificação que já não se admite. As verdadeiras razões de seu assassinato devem ser buscadas na sua própria família”.

Outro pesquisador incansável, Manuel Ayllón, arquiteto e autor de Granada, 1936 (Editorial Stella Maris), também é taxativo sobre isso: “Lorca não era um problema político, não ‘militava’ no sentido estrito, e podia ser extravagante, incômodo e meio afrontador nos seus hábitos joviais, mas nunca foi um perigo para absolutamente ninguém; politicamente, não era visado pelos fascistas, uma vez que era inofensivo. Na realidade, contra ele não houve sequer uma ordem de detenção assinada. Federico foi simplesmente levado da casa dos Rosales, que lutaram para libertá-lo no minuto seguinte e não descansaram nos dois dias subsequentes. O poeta Luis Rosales, irmão de dois falangistas, foi visitá-lo, pelos dois dias, na prisão perto de Granada. Ninguém imaginava que ele corresse qualquer risco de vida, ali adentro. Seguiam tentando tirá-lo de lá, quando veio a incrível notícia da sua morte por um pelotão que incluía membros do quarteto de famílias proprietárias da Vega de Granada que, então, estava dando bons lucros a Federico Rodriguez e aos seus Lorca-García”…

Não é, de modo algum, “teoria conspiratória” surgida 80 anos depois. Nem envolve somente as pesquisas de Caballero e Ayllón, mas começou a abalar até as antigas certezas de Gibson, que está, no momento, empenhado em rever suas descrições, desde o “sequestro” no dia 17 até a execução apenas dois dias depois, sem julgamento e causando, mesmo, alguma desagradável surpresa nos círculos mais próximos do quartel-general de Francisco Franco. Claro: um fuzilamento tão brutal não seria, jamais, a melhor propaganda para os fascistas empenhados em tomar o poder na Espanha culta, também. Aliás, consta que as primeiras notícias sobre a morte de Lorca foram veiculadas por eles, os nacionalistas, pretendendo que o poeta houvesse sido vítima da “loucura republicana” (ironia das ironias) e, quando a Guarda Civil emergiu como a assassina de FGL, fez-se um silêncio sepulcral sobre o assunto, por parte dos amigos do futuro ditador.

VINGANÇA LITERÁRIA
Miguel Caballero é quem traz mais uma surpreendente pista: “A chave para abrir o cofre de estranhezas em torno do fuzilamento sumário de Lorca esteve desde sempre ali, representada, escrita de punho e letra pelo poeta: trata-se de um presságio fatídico que, agora, oito décadas depois do crime, assume outra dimensão. A casa de Bernarda Alba foi uma vingança literária – enfatiza o historiador granadino. Caballero vê a famosa peça – que correu mundo – como um dos fios de meada da morte, os quais vêm sendo desenrolados por mais de uma dezena de pesquisadores que investigam a história da família desde a metade do século XIX. Naquela época, a Vega de Granada estava em poder de uma aristocracia residente em Madri, e que viria a cair em ruína financeira no alvorecer do século seguinte. As terras foram, então, adquiridas por um grupo da burguesia ascendente em Andaluzia, no qual figuravam o pai de Lorca e seus parentes, os Roldán e os Alba.

Caballero descreve: “Eles foram comprando as terras de modo coletivo, através de sociedades. E estes campos vão adquirindo muito valor com o plantio açucareiro, enquanto a Granada de 21 engenhos se converte numa das províncias mais ricas da Espanha. O pai de Lorca participa como acionista de vários deles. E a disputa começa com a divisão dos lucros e mais uma tentativa de dividir as terras, porque nem todos tinham a mesma sombra nem a mesma água, sendo daí que surgiram os primeiros desentendimentos entre os Roldán, os Lorca e os Alba. Uma mesma família, na verdade, porque eram endogâmicos: casavam-se entre si, a fim de manter as terras antes de mais nada”…

Família de Lorca em 1912. Poeta à esquerda de pé, ao lado dos irmãosFamília de Lorca em 1912. Poeta à esquerda de pé, ao lado dos irmãos

Ora, para a tragédia rural A casa de Bernarda Alba, Federico García Lorca foi se inspirar em personagens reais, entre as quais avulta Francisca Alba Sierra, uma mulher forte e que se comporta da forma tirânica mostrada nos palcos, para desagrado dos Alba de carne e osso, pouco afeitos às licenças poéticas. Para eles, a peça cheirava mal e tinha insinuações insultuosas.

Os Lorca possuíam uma residência de verão granadina – a Huerta de San Vicente –, que foi assaltada em 9 de agosto de 1936 por alguns primos de Federico, do ramo dos Roldán, tidos como conspiradores contra a República. Além dos Roldán, o historiador Miguel Caballero lembra que outros familiares estiveram implicados nos atos de detenção e execução de Federico, nomeadamente Antonio Benavides, que era sobrinho-neto da primeira mulher do pai do poeta (e que será o homem acusado de disparar, pelas costas, contra a sua cabeça, na manhã desatada de ódios redimidos não só no plano da política de mistura com os preconceitos).

Além desse pano de fundo – nada teatral –, existiu ainda uma ameaça vinda diretamente da poesia de Lorca, para a sua vida prestes a findar tragicamente: consta que, no dia 19, ele foi levado para a morte por um pelotão comandado pelo oficial da Guarda Civil (Nicolás Velasco Simarro), que teria se sentido pessoalmente ofendido pelos versos de Romance de la Guardia Civil Española, em virtude de referências à dura repressão da Guarda contra uma greve em Málaga. Mais: o ressentimento pessoal de Simarro pode ter sido “bem-reforçado” pelo fato de esse oficial haver desempenhado funções – pagas por um Roldán (Alejandro Benavides) – no caso de uma fuga de um grupo de camponeses da Vega, sempre objeto de disputas mesquinhas com o pai de Lorca…

Uma rede de ódios e intrigas familiares começa a assumir a frente do assunto “assassinato do poeta”. Seu cadáver jaz em algum lugar da estrada, na vala comum na qual teria sido abandonado e encoberto de areia e pedras andaluzas? Talvez não. A própria família é, ainda hoje, totalmente contrária (?) a buscas mais profundas por lá. O que é muito estranho. Todos os Lorcas velhos parecem saber que Federico não se encontra mais naquela vala há muito tempo, tendo sido de imediato exumado (ainda naquele agosto aziago, há 80 anos), como certamente não o seria, no caso de um horrível crime político, que a Guarda Civil naturalmente teria todo interesse em camuflar de incertezas, ao longo do tempo. Essa é mais uma nota que soa falsa na orquestração das obscuridades que aproximam o García Lorca póstumo dos piores motivos de discórdia entre familiares, em cenário ainda mais violento do que o de um romance como Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Mais uma vez, talvez a vida imite a arte, se é que não a supere de muito.

A INTERNET E AS ARTIMANHAS DO PENSAMENTO FÁCIL

SE PERMITIRMOS, NOS CALARÃO (mf)


160815-Conformismo2
“Pensamento fácil”, que ameaça dominar as redes sociais, é o modo difuso como raciocina o indivíduo deste começo de século. É a renúncia antecipada — e rancorosa — a qualquer complexidade. É, por isso mesmo, muito mais conformista que revolucionário
Por Fran Alavina | Imagem: Pawel Kuczynski
Esttexto amplia e aprofunda o debate aberto no artigo “Notas sobre a esquerda ruim de internet”. Nasce de um duplo objetivo que, todavia, possui uma única fonte: os comentários, debates e reações que ao texto citado.
O primeiro dos objetivos é reafirmar o núcleo central das primeiras “Notas”, uma vez que tal núcleo foi escamoteado, algumas vezes, por um certo “entusiasmo difuso” que hoje é a aura da tecnologia virtual. Tal entusiasmo não faz acepção de posição política, e nisso está seu caráter perverso. Ele não é nem de direita, nem de esquerda. Pode ser encontrado em bons leitores de Gramsci, ou em indivíduos facistóides. É este entusiasmo febril que impede o começo da crítica, de modo que qualquer um que a inicie é rapidamente taxado de atrasado, retrógado e reacionário. A lógica dessas taxações é clara: quem não adere de “corpo e alma” ao novo não pode ser outra coisa senão que “atrasado”, “retrógrado” e todos os outros adjetivos que possam denotar sentido negativo ao que se considere velho. Este entusiasmo é a expressão mais acabada de uma época que, acossada pelo consumismo, astuto tem uma sede insaciável por tudo que se apresente como novo. Que um mesmo sentimento (o entusiasmo difuso) dirigido a um mesmo objeto (a tecnologia virtual) possa ser encontrado entre conservadores e progressistas, a nós que nos posicionamos à esquerda deveria, no mínimo, ser alvo de uma atenção mais demorada.
Por isso, afirmamos que ao criticarmos os efeitos danosos para a esquerda da aceitação da “naturalização do virtual”, demonstrando uma das lógicas de operação da internet, expressa mais particularmente em suas redes sociais, em nenhum momento propomos que se deva abandonar a internet como lugar de realização do debate político. Em nenhuma parte da argumentação indicamos que devêssemos voltar a datilografar nossos textos, divulgar nossos panfletos e artigos apenas com a ajuda de mimeógrafos, ou ainda nos comunicarmos em código morse. A essência de nossa crítica não estava em apontar o desuso, o abandono dos meios virtuais, mas pensarmos os usos para não cairmos em uma prática mecânica e ingênua. Uma vez que no campo político, sabemos, não há espaço para ingenuidades. Nesse sentido, buscou-se iniciar um debate que possa fomentar uma crítica à esquerda da “naturalização do virtual”.
Todavia, para que esta crítica possa ser feita é preciso reconhecer, em primeiro lugar, que não podemos permanecer em um uso meramente “panfletário” dos meios virtuais. Isto é, imaginar que possamos atuar no virtual sem que essa atuação não retroaja sobre nós. Pois como anteriormente afirmamos, independentemente de nossas posições políticas, o modus operandi do virtual segue à revelia de nossos desejos e vontades. Movimentamos-nos no espaço virtual não segundo o nosso absoluto arbítrio, mas segundo as condições que são previamente dadas e estabelecidas. Em suma, propomos uma prática que seja seguida do pensamento crítico, que não seja cega, que não caia nas armadilhas do espontaneísmo e do voluntarismo. Se é grande nosso afã de lutar e mudar a ordem das coisas, agarrar-se às facilidades oferecidas sem desnudar suas condições não apenas nos será muito custoso, como poderá diminuir nossas capacidades críticas sem as quais não poderemos seguir.
O segundo dos objetivos é dar continuidade ao exercício crítico que iniciamos, desnudando um aspecto que fundamentou parte das reações que se seguiram às Notas I. Tal aspecto é o que podemos denominar (e mesmo denunciar) de pensamento fácil. Todavia, antes que possamos defini-lo mais acuradamente, devemos recordar um elemento que torna propícia a sua expansão.
Com efeito, recorde-se, uma vez mais, que a internet não é um simples meio de comunicação. Seu uso retroage sobre nós, nos modifica, altera nossas capacidades, e se não nos apercebemos destas alterações é justamente porque o discurso da “naturalização do virtual” faz com o virtual nos pareça, de fato, natural. Ademais, esta naturalização difusa do virtual e este retroagir dos seus usos sobre nós é completamente diferente daquilo com ocorria antes com mídias como o rádio e a tv. Nestes últimos, estamos destinados a ser meros receptores; no virtual, porém, tudo se passa em um nível babélico de interação, no qual, em tese, todos têm o mesmo direito de fala, todos podem ser ao mesmo tempo “emissores” e “receptores”. Se todos podem mostrar-se, todos podem ser vistos: se todos podem falar, todos podem ser ouvidos. Ocorre, todavia, que se todos falam ao mesmo tempo, ninguém se ouve; se a visão é chamada a olhar para vários lugares ao mesmo tempo, ela não fixa o olhar em nenhum ponto.
Ora, mas se os pontos dos “emissores” e “receptores” não são mais fixos, porém fluidos, a velocidade e o número de informações e notícias crescem infinitamente. Os fatos não pertencem mais apenas àqueles que os narram, isto é, aos “emissores”, pois para que circulem devem ser replicados, “curtidos”. Assim, o que se narra, se expõe, se faz ver, para o bem ou para mal, pertence a todos aqueles que com um simples click tomam parte de tudo. Se segundo o discurso da liberdade e da criatividade do indivíduo empreendedor “você pode ser seu próprio patrão”, no virtual tem prevalecido uma lógica semelhante, de você estar livre para ver e ouvir o que quiser, e gerar você mesmo a própria informação, de acordo, claro, com sua criatividade. Desse modo, é forçoso admitir que a internet repõe no campo virtual, aos seus usuários, aquilo que a lógica do livre mercado impõe cotidianamente ao mundo.
Ora, a lógica meritocrática neoliberal que diz aos indivíduos que seus sucessos profissionais dependem exclusivamente de seus esforços opera da mesma forma no virtual. Na Babel em que todos podem falar ao mesmo tempo, irão se sobressair aqueles que se fizerem mais vistos, claro que por seus próprios meios. Todavia, como todos podem falar, o número de coisas a serem vistas e ouvidas é infindável, de tal modo que para que se possa tomar parte neste circuito que se quer infinito:tudo deve ser feito segundo o critério da facilidade. Tudo deve ser fácil de ver, de ouvir, de interagir. A time line da rede social será melhor vista, isto quer dizer, mais rapidamente vista, quanto mais fáceis forem as coisas que se apresentem. Nesta faceta, a internet mostra-se muito mais conformista que revolucionária. E todos aqueles que objetivam ganhar e aumentar visibilidade devem assim proceder, não importa a direção política que sigam. É esta mesma lógica que antes se fazia presente nos hábitos alimentares através da expansão das redes de alimentação fast food, e que agora enseja os usos dosaplicativos, estes últimos com as mais diversas utilidades. Tudo deve estar ali, à mão: rápido e fácil.
lógica da facilidade que antes orbitava nas condições objetivas da existência, como, por exemplo, na alimentação, com a expansão dovirtual, o critério da facilidade, par inseparável da rapidez, passa aosbens simbólicos e ao circuito afetivo que lhe sustenta. Acostumando-nos, por meio do hábito excessivo, com o critério da facilidade como algo natural, tendemos a expandir este critério para tudo. Qualquer ato que possa demandar um maior tempo e esforço é, de imediato, rechaçado, posto que se identifica com a encarnação da chatice. Assim, são os nossos desejos, afetos e pensamentos que também devem se acomodar ao critério da rapidez e da facilidade.
Esta acomodação sustenta as alterações que nos lançam diretamente para o vislumbre de um novo tipo de comportamento, um novo modo de ser que deve conformar-se a uma nova ordem das coisas iniciada pela expansão do virtual. Este modo de comportar-se indica que a frequentação do virtual deixa de ser ela mesma um hábito, o hábito de usarmos algo hodiernamente, para se transformar em criadora de novos hábitos. Um destes hábitos é o pensamento fácil. O pensamento fácil é, em primeiro lugar, a nova forma prevalente de interação, com o mundo e consigo mesmo. Sendo forma não é apenas um modo de concepção, mas também de expressão. O pensamento fácil se impõe cada vez mais como o “preço a ser pago” pela velocidade da informação. Ele é uma das características mais exemplares do modo como os usos do virtual retroagem sobre nós. O pensamento fácil é o modo difuso como raciocina o indivíduo deste começo de século. É a renúncia antecipada a qualquer resquício de complexidade. Pois esta última implica demora, esforço, e tais coisas são abominadas como sendo os antônimos absolutos da facilidade. Conformando-se aos tempos informacionais, o pensamento fácil abole a barreira entre o simples e o simplório. Trabalha com definições curtas, como na lógica do estabelecimento do número máximo de caracteres.
Ante o pensamento fácil não pode haver resquícios, resíduos. Tudo deve estar limpo: como uma imagem nítida, sem falhas. Aquilo que demora por se fazer entender é identificado como que possuindo uma falha congênita, por isso mesmo deve ser excluído, marginalizado. É o resto que entreva a interação. Ao se conformar ao informacional, o pensamento fácil demanda um tipo de transparência absoluta dos enunciados, que não devem possuir qualquer opacidade, devem ser privados de qualquer sentido que não seja o aparente. Desse modo, também a linguagem, as capacidades expressivas são alteradas pelo critério da brevidade, que é a regra linguística do pensamento fácil. As palavras cedem lugar às suas abreviações, tendendo a tornar-se apenas siglas. O alargamento da realidade que tanto é atribuído ao virtual, em verdade, é feito de encurtamentos. Aos indivíduos deve-se diminuir qualquer trabalho de elaboração, portanto sua autonomia.
Exemplos do hábito do pensamento fácil não faltam. São os emoticonsque nos oferecem um modo pronto da expressão das nossas emoções; é a “# somos todos (…)” que passou a ser nossa forma mais elaborada de nos solidarizarmos, e que por tratar-se de um vínculo identitário imediatista, na maioria das vezes nos impede de reconhecer melhor a causa dos problemas com os quais nos solidarizamos; é a ojeriza aos textos longos, o que antes era um mero parágrafo de seis linhas, hoje chamamos de “textão”. Escrevê-los tornou-se até um ato revolucionário, pois ele é sempre precedido pelo brado: “Vai ter textão, sim!”.
O mundo ao qual nos relega o pensamento fácil é uma realidade de resumos, de bens simbólicos prontos. Todavia, o pensamento fácil,quando desnudado, nos posiciona ante um denso paradoxo: a tecnologia mais complexa é justamente aquela que pode nos impor uma visão simplista, empobrecida da realidade, uma realidade “pré-fabricada”, como as “bolhas” que se formam das relações das redessociais. Ora, o pensamento fácil enseja algo ainda mais negativo. Por acomodar as coisas à superficialidade simplista, ele contribui para uma visão naturalizada dos problemas histórico-sociais. Estes não são compreendidos conforme a multiplicidade de fatores que os causam, pois o pensamento fácil não consegue acessar contradições. Ele os concebe segundo uma causa única, em geral, aquela que pode reunir maior passionalidade, que pode congregar em torno de si afetos fortes, que não demandem um tempo de elaboração muito longo.
Assim, não é simples coincidência que os grupos mais fascistóides que se mostram sem receios hoje nas ruas tenham antes se articulado bem nas redes sociais. Estas oferecem todas as condições para que uma causa social (a corrupção, por exemplo) possa ser concebida segundo o pensamento fácil. Por isso, a corrupção é sempre apresentada como culpa de uma só pessoa, de um só partido, de uma só ideologia. Opensamento fácil trabalha com generalizações, e por isso é propício à criação dos bodes expiatórios. Veja-se o quanto é comum o achincalhamento da vida privada dos sujeitos. Sabemos que os bodes expiatórios de hoje já foram escolhidos, só não sabemos ainda se serão sacrificados.
Veja-se, pois, quanto o pensamento fácil enseja comportamentos de tipo fascista. Ou se é contra, ou a favor: “simples assim”! Ele, o pensamento fácil, simplifica a realidade, reduzindo a complexidade das coisas aos discursos daqueles que dizem serem as coisas complexas. No varejo das facilidades, os problemas são rapidamente desnudados, para que depois, pela vontade de um, encontrem resolução. Na maioria das vezes, o sujeito escolhido para apontar as resoluções é o medíocre vestido com trajes de herói. Este último é sempre um sujeito de ação, uma vez que a simplicidade do pensamento fácil é usada para impelir uma ação imediata, a ação que põe fim à “bagunça” da multiplicidade, impondo a sobriedade da ordem. A ordem que subjaz em todo pensamento fácil, pois onde tudo está antecipadamente posto em seu devido lugar não há espaço para a desordem, que é confundida com a multiplicidade. Para os desnudamentos dos problemas já temos os intelectuais de youtube. Agora, a massa fascistóide busca o líder. Em verdade, já o encontraram, mas como sua mediocridade oratória é gritante, seu poder de convencimento e de adesão é baixo. Todavia, não se devem subestimar as capacidades do pensamento fácil, pois seu grau de difusão é crescente, expande-se junto com o virtual.
Resta-nos perguntar se nós, que estamos à esquerda, vamos endossar a acomodação ao pensamento fácil, nós que sempre buscamos desmascarar as contradições que perfazem a desigualdade do mundo, portanto que opomos a complexificação à naturalização do âmbito histórico-social. Se também nós nos acomodarmos ao pensamento fácil, cada vez mais perderemos a capacidade de realizar a crítica do presente, pois enquanto nos dão a facilidade como regra, o mundo se complexifica, nos pedindo cada vez mais o forjar de alternativas novas. Estas demandam sempre esforço, pertinácia e tempo. Um tempo que não é o das facilidades e um pensamento que não se contenta com simplismos. O desafio é, então, atuar no virtual sem se deixar seduzir pelo pensamento fácil, nem endossá-lo.





SE A OLIMPÍADA TIVESSE FRACASSADO, DILMA E LULA SERIAM MASSACRADOS

BLOG DA CIDADANIA - EDUARDO GUIMARÃES

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Nos últimos três anos, a imagem internacional do Brasil, que desde 2003 vinha melhorando, sofreu um forte revés. Tudo começou com as cenas de guerra de 2013, as quais, apesar de então o país estar crescendo, reduzindo a pobreza, distribuindo renda e valorizando salários, fizeram o mundo crer que estávamos afundando.
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Em 2014, o ataque à imagem do Brasil se intensificou e se internacionalizou com o mote “Não vai ter Copa”, que, apesar de não ter impedido o evento internacional – que foi um sucesso de organização, diga-se –, fez o Brasil perder muitos turistas – e, portanto, muito dinheiro – e difundiu a mentira de que “dinheiro da saúde e educação” estava sendo direcionado para aquele evento, de dois anos atrás, e o que termina neste domingo, a Olimpíada.
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A luta para conspurcar a imagem do Brasil começou muito bem engendrada, como mostra vídeo publicado em junho de 2013, mas que versava sobre a Copa que aconteceria no ano seguinte.
Motes daquele movimento de 2013 transformar-se-iam em movimentos que lutariam pelo impeachment de Dilma e até pela volta da ditadura militar.
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Apesar das críticas e da campanha para esvaziar a competição de 2014, a imprensa internacional aplaudiu fortemente a capacidade do país de organizar eventos desse porte.
O jornal “El País” enviou um representante ao Brasil e constatou que o cenário de caos previsto por alguns antes do início da competição não se concretizou. Para o profissional do diário espanhol, o mundial supera as expectativas. “Em geral, as partidas ocorrem pontualmente, de maneira brilhante. As ruas se enchem de torcedores felizes, envolvidos em um clima cada vez mais festivo”, disse.
O “The New York Times” destacou a qualidade do futebol disputado e os gramados brasileiros, mesmo em condições adversas. “Em geral, as condições de jogo para a maioria dos jogos têm sido excelentes, o que, em cidades como Natal e Salvador foi uma prova da qualidade dos sistemas de drenagem”, afirmou a publicação.
A revista britânica  “The Economist” ressaltou que os investimentos feitos pelo Brasil são agora vistos em construções entregues. “Já na chegada, você pode ver onde alguns dos 11 bilhões de reais (US $ 5 bilhões) gastos em aeroportos brasileiros entre 2011 e 2014 . Um misto de cimento e tinta fresca permeiam o novo terminal de Natal” constatou o diário, ainda lembrando que centrais de comando foram criadas no País para coordenar as ações de defesa e segurança.
O também inglês “The Guardian” fez um dia a dia em várias cidades brasileiras. O jornalista que veio ao Brasil se encantou com a paixão do brasileiro pelo futebol citando a experiência vivida em Cuiabá. “O fanatismo pela Seleção é extraordinário. Todos, independentemente da idade, sexo ou profissão, estão vestindo amarelo ou verde e estão reunidos por sua paixão para a equipe nacional”, destacou, revelando ter se encantado também com as paisagens brasileiras.
Contudo, o 7 a 1 empanou tudo e nos fez esquecer um grande gol do Brasil, um gol feito fora dos gramados por duas pessoas que foram e continuam sendo esquecidas até hoje.
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Antes de falar de quem construiu tanto, falemos um pouco sobre quem tenta e tenta e tenta destruir.
Pelo menos a esquerda pulou fora das tentativas de usar a Olimpiada de 2016 para prejudicar ainda mais a imagem do Brasil, que, nos três últimos anos dos 14 anos de governos petistas, teve essa imagem pisoteada por farsas como o impeachment e por recordes negativos na economia causados pela mais avassaladora sabotagem econômica que este país já sofreu.
Congresso, mídia e um grupo de autoridades tão partidarizadas que em 2014 fizeram campanha na internet para Aécio Neves paralisaram o país (pela ordem) não votando mais nada e conduzindo investigações que só avançavam se o investigado fosse petista.
Mas a Olimpíada do Rio começaria a resgatar a imagem do país já na abertura.
Contudo, a Olimpíada de 2016 não se limitou a repetir o êxito de organização da Copa de 2014. Foi também um show de competência dos atletas. A conquista do primeiro título olímpico de nosso futebol simboliza uma delegação de atletas nacionais que não se limitou ao tamanho, exibindo garra e talento.
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O êxito dessa Olimpíada mostrará ao mundo que não somos o país de incompetentes e fracassados que os golpistas e os burros pintaram ao longo dos últimos anos. Certamente estamos sendo mais elogiados do que nós mesmos poderíamos nos elogiar, se não tivéssemos esse complexo de vira-latas tão entranhado nas almas.
Seja como for, o mais doloroso é que poucos serão os que vão ter a grandeza e a decência de refletir que uma olimpíada não se organizaria e edificaria (literalmente) nos poucos meses que nos separam da derrubada “temporária” de Dilma Rousseff.
Se tudo tivesse dado errado, ninguém tenha dúvida de que Lula e Dilma estariam sendo massacrados. Atacariam a iniciativa de trazer o evento para cá, atacariam o custo das obras, atacariam a organização. Como tudo deu certo, o sucesso do evento parece ter sido obra do acaso, como se tudo tivesse se preparado sem concurso de ações humanas.
É patético, triste, dá vergonha alheia ver o que essa elite ridícula faz com o nosso país. Os golpistas estão tão envergonhados com o que fizeram que nem tentam colher os louros pelo sucesso de Dilma e Lula. O golpista-mor nem irá comparecer ao encerramento da Rio 2016.
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"LIBERDADE É NÃO TER MEDO" NINA SIMONE

ARTIGO DE BERENICE BENTO - REVISTA CULT


LEU O PROCESSO DE KAFKA? O MEDO O FEZ APIEDAR-SE DE SI MESMO ENQUANTO O GUARDA TRIPUDIAVA DE SUA TRISTEZA (mf)

Ela movimenta seus olhos agitadamente. Esta dança do olhar revela o que estava acontecendo em suas entranhas. Como alguém que busca alguma coisa em um baú desorganizado, Nina Simone (no documentário “What happened, Miss Simone?”), finalmente, encontra a resposta: Liberdade é não ter medo!
O que pode o medo? Tudo. Porque nos torna um corpo sem potência. Na história do homem diante da lei (O processo, de Franz Kafka), os efeitos paralisantes do medo são narrados. Um homem simples pede para entrar na lei. O guarda, no entanto, não o autoriza. O homem pergunta se poderá entrar mais tarde. “É possível. Mas não agora!”, diz o guarda, que se afasta da porta da lei que estava e continua aberta. O homem curva-se para olhar dentro do edifício da lei. O guarda ri e diz: “Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E, ainda assim, sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim”.
O medo do homem aumenta. A presença onipotente, onipresente e onisciente do guarda, panopticamente lhe recorda que é melhor esperar pela autorização. Os dias, as semanas e os anos se passam. A porta continua aberta. Mas ele espera. Suas súplicas não cessam. O guarda ainda lhe faz, de vez em quando, pequenos interrogatórios. No fim, acaba sempre por dizer que não pode deixá-lo entrar ainda. O homem forte e enérgico que chegara anos atrás na porta da lei não existe mais. Tornou-se um velho. Não articula mais palavras, emite apenas alguns sons de pouca inteligibilidade. Não tendo mais a quem recorrer, pede às pulgas, moradoras do casaco de pele do guarda, que o ajudem a convencê-lo de que já era hora de ele entrar na lei. Sua vista já não lhe permite distinguir dia e noite. A morte anuncia-se.
Talvez ao longo dos anos ele tenha se apiedado de si mesmo enquanto o guarda burlava de sua tristeza. Ou tenha pedido complacência, evocando o merecimento por sua obediência. Mas o binômio “castigo & recompensa” não foi suficiente para convencer o poder. Ele estava inteiramente assujeitado. São esses corpos mortos, zumbis políticos, que alimentam a vida vampiresca do poder. Mas, certamente, é nessa não funcionalidade que está a máxima funcionalidade desse corpo capturado.

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Antes de morrer, ousa fazer uma pergunta ao guarda, que se inclina para escutá-lo: “Que queres tu saber ainda?”. “Se todos aspiram à lei”, disse o homem, “Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda responde: “Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.
Transformando esta história em parábola, pergunto: qual o seu ensinamento? Nina Simone já respondeu. Liberdade é não ter medo.
Se ele tivesse ousado entrar?
Primeira hipótese: poderia ter escutado, alguns passos adiante, outros guardiões da lei lhe dizerem que ali não era seu lugar, condenando-o a ser um fora da lei.
Segunda hipótese: diante da lei, ele poderia não reconhecer sua legitimidade.  Afirmaria: Esta lei não me serve. Não me submeterei nem voluntária nem involuntariamente. Prefiro ser um fora da lei. Quebraria, dessa forma, a coluna vertebral da lei, pois se negaria a desejar o desejo da lei. E, assim, a cumplicidade entre poder e obediência, alma mesma da reprodução social, estaria desfeita. Não existe poder sem cumplicidade.
Terceira hipótese: ele poderia, também, ao menos, ter se levantando e caminhado em torno do imponente prédio, morada da lei. Com este simples ato, anteciparia a revelação final do guarda. Descobriria outras portas e outras pessoas esperando para entrar na lei. E, como ele, muitos não entendiam o sentido da lei e o motivo de estarem fora dela. Neste encontro, algo novo seria (potencialmente) produzido. E ele, finalmente, deixaria de negociar com as pulgas para se tornar sujeito de sua história. Entre outros corpos fora da lei, o nosso homem teria a chance de produzir uma ruptura (ou pequenas fissuras) no imenso e poderoso edifício das normas sociais. De onde se esperava obediência, viria a contestação, produzindo curtos-circuitos na reprodução do sistema.
Enfim, ele tinha escolhas. Sabemos, contudo, que a própria noção de escolha, como algo que nasce originalmente no indivíduo, também é uma armadilha. Mas, antes arriscar-se a cair em armadilhas, que ficar “sentado no trono de um apartamento (ou na porta da lei), com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar” (Raul Seixas). De certa forma, a história das transgressões tem em comum este tensionamento (em maior ou menor grau) com os limites impostos pela lei à existência.
Talvez a morte mais triste seja aquele tipo de suicídio diário que tantos de nós comentemos: vivemos morrendo de medo. No obituário do homem diante da lei estará escrito: morreu de medo. E, no de Nina Simone, “viveu e morreu lutando”.

VAMOS FALAR SOBRE GÊNERO?

Em mais um excelente artigo a filósofa Márcia Tilburi publica na Revista Cult para refletirmos e falarmos mesmo sobre gênero, segundo ela com a "urgente necessidade de pensar contra a má fé".


Teoria, ideologia e a urgente necessidade de pensar contra a má fé

O teólogo André Musskopf defende que os fundamentalistas têm ajudado o feminismo e os movimentos pela diversidade sexual e de gênero. Em artigo (que pode ser lido na íntegra aqui:http://andremusskopf.blogspot.com.br/2016/02/sobre-como-fundamentalistas-tem-ajudado.html), ele defende que “talvez o mais surpreendente seja que aqueles e aquelas que não queriam falar sobre o assunto de repente se veem obrigadas e obrigados a estudar e conhecer – e até falar sobre ele”. De fato, a gritaria de alguns pastores evangélicos, deputados e vereadores homofóbicos tem esse outro lado, um efeito inesperado de colocar a questão em pauta, de levar muita gente a repensar o modo como a questão de gênero afeta suas vidas cotidianas. A vida e a sociedade são dialéticas, digamos assim, tudo pode ter dois lados, e o olhar otimista ajuda todos os que sobrevivem a seguir na luta por direitos. Mas infelizmente há o lado péssimo de tudo isso, aquele que é vivido pelas vítimas desse estado de coisas, aqueles para quem não há justiça alguma.
Quem luta, não pode desistir. Enfraquecer o inimigo é necessário desde que não se menospreze sua força.
O caminho que devemos seguir quando se trata de pensar em gênero é aquele que reúne o esforço da crítica, da pesquisa, do esclarecimento, o esforço de quem se dedica à educação e à ciência, com o esforço da escuta. Quando escuto alguém falando de “cura gay” imagino o grau de esvaziamento de si, de pobreza subjetiva, que levou essa pessoa a aderir a uma teoria como essa. Infelizmente, esse tipo de teoria popular se transforma em ideologia enquanto, ao mesmo tempo, é usada por “donos do poder”, para vantagens pessoais.
Importante saber a diferença entre teoria e ideologia. São termos muito complexos. Incontáveis volumes já foram escritos sobre isso, mas podemos resumir nos seguintes termos: teoria é um tipo de pensamento que se expõe, ideologia é um tipo de pensamento que se oculta.
Há, no entanto, um híbrido, as “teorias ideológicas” que, por sua vez, expõem com a intenção de ocultar, ou ocultam fingindo que expõem.
Há teorias populares (que constituem o senso comum, as opiniões na forma de discursos que transitam no mundo da vida depois de terem sido lidas em jornais e revistas de divulgação) e teorias científicas (que estão sempre sendo questionadas e podem vir a ser desconstituídas, mas que escorrem para o senso comum e lá são transformadas e, em geral, perdem muito do seu sentido).
Ideologia, por sua vez, é o conjunto dos discursos e opiniões vigentes que servem para ocultar alguma coisa em vez de promover esclarecimento, investigação e ponderação.
A ideologia de gênero sobre a qual se fala hoje em dia, não está na pesquisa que o discute e questiona, mas no poder que, aliado ao senso comum, tenta dizer o que gênero não é.
Algo muito curioso acontece com o uso do termo ideologia quando se fala em “ideologia de gênero”. Algo, no mínimo, capcioso. Pois quem usa o termo “ideologia de gênero” para combater o que há de elucidativo no termo gênero procura ocultar por meio do termo ideologia não apenas o valor do termo gênero, como, por inversão, o próprio conceito de ideologia. É como se falar de ideologia de gênero servisse para ocultar a ideologia de gênero de quem professa o discurso contra a ideologia de gênero.
Não se trata apenas de uma manobra em que a autocontradição performativa é ocultada pela força da expressão, mas de uma caso evidente de má fé. E quando a má fé vem de pessoas (homens, sobretudo) que se dizem de fé, então, estamos correndo perigo, porque a fé do povo tem sido usada de maneira demoníaca.

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Walmor Correa, Metaformoses e Heterogenia – MAM, SP, 2015
Obra
O papel ético e político de quem pesquisa, ensina e luta pela lucidez em uma sociedade em que os traços obscurantistas se tornam cada vez mais intensos é também demonstrar que percebemos o que se passa e que continuaremos do lado crítico a promover lucidez, diálogo e respeito aos direitos fundamentais, inclusive relativos à sexualidade e ao gênero, em que pese a violência simbólica a que estamos submetidos.

O Brasil retrocede em suas leis. No último dia 18, a Câmara dos Deputados em votação do texto base da MP 696/15, promoveu a retirada dos termos “incorporação da perspectiva de gênero” do contexto das atribuições do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. No dia 16 de fevereiro a Câmara de Vereadores de Nova Iguaçu sancionou uma lei que veda a distribuição e divulgação de material didático contendo orientações sobre diversidade sexual e, entre outras pérolas do autoritarismo e da burrice sócio-política, proíbe o “combate à homofobia, de direitos de homossexuais…”.
Durante toda a minha vida lecionei em faculdades confessionais. Conheci muitos padres, freiras e pastores. Todos, sem exceção, ainda que religiosos, eram “gente como a gente” em todos os mais variados sentidos, com as mesmas paixões e os mesmos problemas relativos à sexualidade. Entre meus alunos pastores sérios, críticos e honestamente comprometidos com sua religião, surgiu a seguinte questão: como ajudar alguém que chega à igreja acreditando que está doente porque descobriu um desejo homossexual? Sempre trabalhamos a resposta na direção da desmontagem do ardil da sexualidade, seu uso pela igreja e a invenção da ideologia da cura. E sempre mostrei os teóricos que defendiam o prazer como uma saída razoável, porque as teorias servem para isso, para nos fazer pensar no que não estamos acostumados. Enquanto as ideologias servem para impedir o pensamento.
Minhas aulas sobre história do corpo que envolviam estudos sobre gênero e sexualidade (e evidentemente, as teorias de sua desconstrução) foram procuradas por pessoas que, na igreja, estão querendo realmente transformar a vida das pessoas para melhor. Há honestidade nas igrejas, ainda que atualmente os desonestos estejam na moda (e lucrem com isso).
Diante de exemplos assim, a defesa da reflexão, da discussão conceitual, da compreensão crítica das teorias continua urgente, mas isso tudo não basta. É preciso honestidade intelectual.
Para isso precisamos contar com a boa fé de tantos pessoas que se dizem religiosas no Brasil.
Infelizmente a má fé tem vencido.
Igrejas fundadas na má fé tem crescido a ponto de que Deus deve estar preferindo os ateus.